Mundos em conflito [As boas maneiras, Juliana Rojas e Marco Dutra, SP, 2017]

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por Hildon Carade

Para um cinema brasileiro um tanto marcado pelo registro realista/naturalista, “As boas maneiras” (2017) apresenta um frescor às narrativas baseadas na crítica ao status quo, ao delinear o encontro de duas mulheres de posições sociais diferentes, mas que conservam o destino outsider, cada qual em seu meio. O frescor ao qual me refiro diz respeito à história de lobisomem que o filme se propõe a contar, borrando, assim, as fronteiras entre os gêneros de horror e de crítica de costumes. O problema é que os diretores Juliana Rojas e Marco Dutra demoram em deixar clara a sua proposta, o que contribui para certa irregularidade na condução da narrativa. Vejamos.

A trama acompanha o itinerário de Clara (Isabél Zuaa), mulher negra que, ao transitar em mundos sociais diferentes, termina por se defrontar com elementos sobrenaturais. Seu destino é selado quando aceita o emprego de babá no lar de Ana (Marjorie Estiano), jovem branca à espera de seu filho. De início, a câmera se concentra no contraste entre as vidas da patroa e da empregada. Em contraposição ao apartamento da primeira, no qual tudo parecia ser novo e em perfeita ordem, surge a morada da última, na qual a bagunça impera e aluguéis atrasados se acumulam.

Todavia, mundos opostos se aproximam na medida em que Clara vai selando o seu envolvimento com Ana. É da cumplicidade entre patroa e empregada que o espectador toma conhecimento dos dissabores de Ana. O envolvimento entre as duas transborda do afetivo para o carnal, em termos literais (Ana bebe do sangue de Clara e suga o seu pescoço). Aqui, inadvertid-amente ou não, os diretores revolvem o velho argumento de Gilberto Freyre, segundo o qual o equilíbrio dos antagonismos entre as raças branca e negra se dá pelo concurso sexual, em que os negros sempre ocupam o papel de objetos do prazer e do sadismo dos brancos.

Paulatinamente essa trama vai perdendo força para o registro de horror que acompanha a trajetória de Ana, que nos é mostrado através das descobertas de Clara. O sonambulismo de Ana, os desaparecimentos em noites de lua cheia, o seu gosto por uma dieta rica em carnes… Esse é o novelo sobrenatural deslindado na tela. Assim, somos entregues a um outro tipo de narrativa, quan-do descobrimos que Ana é mãe de um lobisomem, que passa a ser criado por Clara.

A partir do momento em que Clara toma para si a criança, os diretores passam a construir um outro argumento, a saber: o acolhimento da diferença radical – representada pela natureza mon-struosa do garoto – só é admitido por alguém imbuído por uma ética maternalista. Clara assume o fardo de lidar com um diferente. E aqui se processa uma inversão das relações raciais que foram construídas durante todo o nosso período escravista. Agora, o menino branco é quem surge acorrentado, haja a vista ser necessário a contenção da sua monstruosidade.

Enfim, o filme parece estabelecer duas tramas distintas, que se alinham no destino de duas mulheres unidas pelo desamparo. Há de se lamentar que a montagem do filme não foi muito feliz na tarefa de alinhavar estes dois momentos, muito por conta de limitações do roteiro que, embora acompanhe o trajeto de Clara, não oferece maiores elementos sobre a sua vida pregressa. Talvez tenha sido o objetivo dos diretores mostrar que, quando Clara adentra o mundo da classe média branca, ela o fez sem ter a mínima ideia de que encararia perigos dignos de um filme de terror, para além dos horrores já produzidos pela desigualdade social que impera em nosso país.

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