Um filme de raiz [“Chuva é cantoria na aldeia dos mortos”, João Salaviza e Renée Nader, Brasil/Portugal, 2018]

Por Peu Agra

São tempos tenebrosos para se discutir abertamente a cultura indígena de nosso país – e talvez o melhor momento para que um filme como “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos” seja mostrado.

A principal impressão foi, em primeiro contato com o longa, o choque de assistir a um filme nacional com legenda. Mas o idioma dos diálogos não é o inglês, tão exaltado como língua fundamental num mundo globalizado, e sim um idioma indígena que resiste ao apagamento pelo processo de imperialismo cultural.

No filme, quando entra em contato com o espírito de seu falecido pai, Ihjãc, um jovem Krahô da Aldeia Pedra Branca, isolada no interior do país, precisa realizar uma cerimônia de final de luto. No decorrer da estória somos apresentados a outros aspectos tradicionais Krahô e a sua maneira de encarar o mundo, maneira ainda que rústica já demonstra sofrer interferências do homem branco.

A estética documental se choca com a ficção em diversos momentos, tanto nas memórias trazidas por índios antigos quanto no retrato de costumes mostrados ao longo do processo de organização da cerimônia. Entretanto, quando o protagonista sai da tribo em busca de tratamento médico, é que entendemos mais sobre a reclusão em que vive. O contato com os homens na cidade é mínimo, porém a distância entre as duas culturas é mais do que física, principalmente quando percebemos a invisibilidade dos órgãos indigenistas, abordada de uma maneira sutil porém significativa.

A força está constantemente substantivada no longa, seja no sentido do o trabalho, onde é importante exaltar a posição e participação das mulheres da tribo em todos os processos, sua autoridade como parte integrante daquele meio e sua voz ativa nas tomadas de decisões, ou na questão espiritual que se faz sempre presente pela crença nos poderes e grandiosidade da natureza e no modo em que eles lidam com a perda dos entes queridos.

Nesse sentido, a fotografía de Renée Nader Messora, que realizou o filme ao lado de João Salaviza, desempenha um papel de apresentar toda a grandiosidade dessa cultura sem perder a sua simplicidade. Os planos longos tornam mais íntima a relação com os personagens e a própria granulação na imagem, que me chamou a atenção no início, acrescentou significado . Destaque também para o desenho de som, que reforça ainda mais o que foi dito acima.

Em tempos em que a ignorância generalizada trouxe de volta estereótipos retrógrados é importante conhecer as infinitas particularidades das culturas indígenas e tantas outras ameaçadas pela atual conjuntura política do país. “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos” é uma afirmação da resistência de um Brasil que sempre existiu e pouco a pouco é usurpado.

Sobre André Dib

André Dib é jornalista, pesquisador e crítico de cinema, com experiência em festivais brasileiros e estrangeiros. Realiza curadorias e oficinas para instituições, mostras e festivais de cinema. Membro da diretoria da Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine 2013-17). Tem textos publicados em diversos jornais, revistas, sites e catálogos, além do livro “100 Melhores Filmes Brasileiros” (2016), “Documentário Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2017) e “Animação Brasileira: 100 Filmes Essenciais” (2018), organizados pela Abraccine. Idealizou e coordenou até 2017 o projeto de exibição “Sessão Abraccine”. Organizador (com Gabi Saegesser) do livro "Antologia da Crítica Pernambucana" (2020). Mestre em Comunicação pela Universidade Federal da Paraíba.
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